sexta-feira, 26 de março de 2010

Luna

O seguinte artigo mostra sentimentos que muitas vezes só são conhecidos por quem tem um animal de estimação.
"Os animais de estimação aparecem, por vezes, sem estarmos à sua espera e entram-nos pela vida familiar adentro. Quando morrem deixam uma sensação de perda grande. Se tem um animalde estimação vai compreender as linhas que se seguem, se não arranje um, cão, de preferência.
Há muitos anos, lá no meu bairro, vivia uma senhora de idade que tinha um cão de companhia velhinho e de pequeno porte. Um dia, como é inevitável, morreu. A senhora chorou a sua morte como se se tratasse de um ente querido. Nós, putos de bairro e da rua, insensíveis à sua dor, gozámos com a situação, porque eramos imaturos e não a compreendíamos.
Até há uns anos fazia-me confusão constatar que donos de cães, envergando ainda pijamas e respectivos robes, se davam ao trabalho de, bem cedo, se deslocarem à rua para que os seus canídeos pudessem aliviar-se na relva, no empedrado ou contra um poste. Dizia para mim próprio que nunca iria fazê-lo e que era preciso ter uma pachorra enorme para alguém se dar ao trabalho de sair do quente da caminha para ir para a rua, apanhar frio, enquanto espera que um animal se dê ao trabalho de fazer o que tem a fazer. Não podia estar mais enganado!
Há cerca de seis anos ofereceram-me uma cadela cruzada de Rottweiler com Labrador, um quase rafeiro, portanto, que revelou desde o início uma grande inteligência, para um cão, bem como sensibilidade e perspicácia para os estados de espírito dos membros da casa. Desde logo me elegeu como chefe da matilha, o lobo-alfa (porque é assim que os nossos cães nos vêem - elegem o líder, se este se impuser, e os restantes membros da família são vistos como mais um da matilha) e passou a acompanhar-me para todo o lado. Dotada de uma personalidade muito dócil, típica dos Labrador, reagia aos meus humores. Recordo que o seu pecado favorito era aliviar-se no relvado que tanto trabalho me dá. Quando isso acontecia, ao chegar a casa eu sabia-o de imediato, porque a Luna, moita-carrasco, ficava impávida e sorrindo-me timidamente (sim, porque os cães também sorriem!), abdicava de vir a correr ao meu encontro e eu sabia, de imediato, que tinha feito asneira.
Nunca tive muita paciência para lhe ensinar muitas coisas, mas ela aprendia muito rápido, pelo que a trela foi um acessório que raramente utilizei. Acompanhava-me sempre quando andava a pé, de bicicleta ou mesmo atrás do jipe, por esses caminhos rurais que começam a escassear. Abrandava quando o cansaço a atacava, mas nunca desistia, estoicamente chegava, sempre.
Sem nos apercebermos, a Luna passou a fazer parte da família e das rotinas diárias. Ir à rua, comer (adorava os petiscos a que os humanos chamamos restos), brincar ou partilhar no alpendre um pôr-do-sol de Verão connosco, eram verdadeiros prazeres para ela.
Há cerca de três anos surgiu-lhe uma doença endémica desta região - a Leishmaniose - que é incurável. Controlá-la foi difícil. O abate, fora de questão. Aceitou corajosamente as quarenta injecções e melhorou. Partilhou connosco estes três anos. Resolveu deixar-nos na passagem para 2010. Lutou pela vida, lutámos com ela e por ela. Não resistiu, desistiu e desistimos. Deixámo-la ir. Deixou um vazio enorme em casa. Estamos a recomeçar, para ajudar arranjei mais uma alienígena, uma Canis Familiaris negra como a noite, louca, feliz e também inteligente, veio tentar colmatar o vazio deixado pela outra. A sua graça é Luna."

Por José Carlos Lopes in jornal O Interior

2 comentários:

Anónimo disse...

Muito bonito!

Milene Baixo disse...

entendo todas as palavras ditas. Sou uma amante de cães e gatos e sempre me pego sofrendo por perdas e sorrindo com ganhos. e depois de tantos, o que posso dizer é que sempre vale a pena recomeçar.

Um abraÇO,

Milene Baixo
www.donododono.com.br